sexta-feira, 20 de julho de 2012

Sobre ser


Quando pensamos no que somos,
Já não somos mais.

Como as nuvens,

Criamos formas
E escorregamos pelos céus [ou pelos sonhos]

Mas não somos somente isso.

Somos também pedra,
Terra, dureza.

E entre o erro e a piedade,
Sem entender muito bem,
Somos ilusão
Sem deixar de ser realidade.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Uma porta entreaberta: entre Drummond e Caeiro

Quando Carlos Drummond terminava de escrever um poema sobre o tempo, que viria a fazer parte de seu livro A Rosa do Povo, o poeta sentiu uma enorme dificuldade em concluí-lo. Percebendo que seu esforço tornara-se em vão, foi até a sala onde se sentou numa poltrona já velha, mas muito confortável. Pendurado na parede a sua frente havia um quadro de um pintor de Lisboa chamado Àporo. As cores suaves da pintura preenchiam um campo verde e uma casinha simples com uma varanda, ao fundo, bem distante no cume de uma montanha. Tentando imaginar como seria aquela casa por dentro, se havia uma família, um homem solitário – e se ele ficasse doente? –, um pastor, um camponês, se haviam cachorros e passarinhos, o poeta pegou no sono. Quando se deu conta, estava em frente àquela casinha. E, sentando em uma cadeira de balanço, recitando um poema dele, estava Alberto Caeiro:

“Um inseto cava
Cava sem alarme
Perfurando a terra
Sem achar escape.

Que fazer, exausto,
Em país bloqueado,
Enlace de noite
Raíz e minério?

Eis que o labirinto
(oh razão mistério)
Presto se desata:

Em verde, sozinha,
Antieuclidiana,
Uma orquídea forma-se.”

Caeiro  – Drummond, inseto não se alarma, quem se alarma são os homens doentes.

Drummond ficou pensativo, por um instante, antes de responder.

Drummond  – Veja, entendo que poesia é negócio de grande responsabilidade, e não considero honesto rotular-se de poeta quem apenas verseje por dor-de-cotovelo. Quando digo que o inseto cava sem alarme perfurando a terra sem achar escape, quero dizer que com paciência o poeta tem que ser armar, tem que se entregar aos trabalhos cotidianos da técnica, da leitura, da contemplação, e mesmo da ação.

Caeiro  – O que tem haver poesia com responsabilidade? Não entendo.

Drummond  – Quanto egoísmo, minha voz e a voz do povo são uma só voz que ecoa nosso tempo de cinzas, de náusea. A esperança e a poesia são como uma flor que nasce no meio da rua e que ilude a polícia e rompe o asfalto. Estais no fundo do mar, Caeiro, e, mesmo que não perceba, tuas vestes estão salgadas e encharcadas. Mesmo que alheio, também carregas o fardo da sociedade. 

Caeiro  – Você fala sobre sociedade, sobre povo. Não vejo povo, nunca vi povo, vejo apenas vários homens assombrosamente diferentes entre si; cada um separado do outro por um espaço sem homens. Além disso, se este inseto a que se refere continuar cavando, tudo que encontrará será o fundo da terra onde há minérios e raízes. Mas se descontente com isto procurar mistério além do que há – que são a terra, os minérios e as raízes –, exausto se defrontará com sua própria loucura.

Drummond  – Pois digo que no fundo da terra; em país bloqueado; no enlace de noite; este labirinto escuro (por mistério) se desatará. Isto é a emancipação do povo, da poesia. Em verde, sozinha, no escuro, uma orquídea forma-se. Morre a aporia. 

Caeiro  – O mistério é há quem pense em mistério. Dizes, também, que todos sofrem, ou a maioria de todos, com as coisas humanas postas desta maneira. Dizes que se fossem diferentes, sofreriam menos. Dizes que se fossem como tu queres, seria melhor. Se as coisas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo. Ai de ti e de todos que levam a vida a querer inventar a máquina de fazer felicidade.

Drummond  – Confundo-me entre dó e enjoo diante de tua ingenuidade. Perdido na alienação inventa seu próprio pasto vazio de sentido. Não passas de uma ovelha a escrever poemas. Por isso não podes ver nem sentir o cheiro da orquídea que repele o fedor da aporia existencial e social.

Com o tom áspero da conversa os dois poetas preferiram se calar. Incomodados com um silêncio constrangedor, passaram a olhar para o sol que se punha. Então, agindo como se cada outro não estivesse presente, começaram a escrever em seus blocos de papel.
Caeiro, desajeitado e desacostumado com sentimentos eufóricos, preferiu imaginar que aquela conversa não tivesse sido daquele jeito, e escreveu:

“Ontem à tarde um homem das cidades
Falava à porta da estalgem.
Falava comigo também.
Falava da justiça e da luta para haver justiça
E dos operários que sofrem,
E do trabalho constante, e dos que têm fome,
E dos ricos, que só têm costas para isso.

E, olhando para mim, viu-me lágrimas nos olhos
E sorriu com agrado, julgando que eu sentia
O ódio que ele sentia, e a compaixão
Que ele diz que sentia.

(Mas eu mal o estava ouvindo.
Que me importam a mim os homens
E o que sofrem ou supõem que sofrem?
Sejam como eu – não sofrerão.
Todo o mal do mundo vem de nos importarmos uns com os outros,
Que para fazer bem, quer para fazer mal.
A nossa alma e o céu e a terra bastam-nos.
Querer mais, é perder isto, e ser infeliz.)

Eu no que estava pensando
Quando o amigo de gente falava
(E isso me comoveu até as lágrimas),
Era em como o murmúrio longínquo dos chocalhos
A esse entardecer
Não parecia os sinos duma capela pequenina
A que fossem à missaas florese os regatos
E as almas simples como a minha.

(Louvado seja Deus que não sou bom,
E tenho o egoísmo natural das flores
E dos rios que seguem seu caminho
Preocupados sem o saber
Só com florir e ir correndo.
É essa a única missão do mundo,
Essa – existir claramente,
E saber fazê-lo sem pensar nisso.)

E o homem calara-se, olhando o poente.
Mas que tem com o poente quem odeia e ama?”

Quando terminou de escrever, percebeu que Drummond já havia acordado e voltado para seu tempo, mas que deixara um papel sobre a cadeira onde estava. Tratava-se de um poema que ocupava a folha inteira, mas que, por algum motivo, foi apagado com exceção de um único verso.
Caeiro tomou o papel nas mãos e leu:
“O sol consola os doentes e não os renova”


Por fim, Drummond, ao viajar de volta para casa e despertar em sua poltrona finalmente conseguiu completar o poema que deixara inacabado:

“Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras e mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas e enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir.”