sábado, 25 de agosto de 2012

A mão do apego


Quando nascemos somos uma espécie de vazio. Um sopro, quase imóvel, que paira sobre uma mão gigante. A mão do apego. Aos poucos, vindas de todos os lados, rajadas de ar trazendo pedaçinhos de coisas indefiníveis começam a dar forma a um pequeno redemoinho de vento, de pensamento, que inicia uma dança sobre a palma da mão gigante. É o florescer de um pequeno ego.
Com o passar dos tempos e das tempestades os redemoinhos sobreviventes crescem imponentes, transformam-se em tufões, tornados e até ciclones. Mas, na proporção em que eles ganham força, o movimento necessário para que eles sobrevivam formam violentas correntezas de ar que atraem para seu centro os dedos da mão gigante sobre a qual eles estão. Quanto mais feroz seu espiralar, mais os dedos se contraem, mais a mão se fecha. No auge deste momento de potencia, de turbulência, o ego é esmagado e fechado em si mesmo. O seu ápice é o seu fim.
Muitos creem que as pessoas morrem quando o corpo já não suporta mais trabalhar, mas, na verdade, é assim que morremos. É uma morte antes da morte, e o que morre não é a verdadeira vida, a vida liberdade, e sim a vida mentira, a vida petrificada em si mesma e incapaz de sobreviver aos ventos do mundo.

sábado, 11 de agosto de 2012

Mente demasiada(mente)

Ufa! Lar doce lar. Preciso tirar essa roupa pesada. Que bagunça que tá essa casa. Nossa, que calça difícil de tirar. Cadê meu chinelo? Há, há! Essa é clássica. Cadê meu chinelo? Há, há, há! Agora é sério, cadê a porra do meu chinelo? Ah, que se dane, vou ficar descalço. Esse chão está imundo. Tá grudando sujeira no meu pé. Que saco, ninguém varre essa casa. Depois que der uma descansada vou varrer. Vou ligar o som. Vamos ver, vamos ver. Tom Jobim, ah, é muito Cult. Beatles? Esse álbum tem uma música que eu gosto, "Across The Universe". Vou por logo no lado “b”. Vitrola é massa. Hora que acabar esse álbum vou por aquele do Mano Chao, ou será que coloco agora? Essa tarde de sol combina com este tipo de som. Tem um pega tropical, latino-americano, quente. Queria morar no litoral. Vou tomar uma ducha. Não. Estou com muita fome. O que será que tem na geladeira? Perdido en el corazon. Feijão de ontem, ah, ninguém merece. Me dicen el clandestino. Arroz, ah, arroz eu encaro. Mas, e mistura, tem o que? Ovo frito tô enjoado. Que droga, vou fazer um miojo. Soy una raya en el mar. Que viagem. Essa letra do Mano Chão é muito doida. Há, há, eu disse Mano Chão. Chão é o álbum novo do Lenine. Preciso pegar pra ouvir qualquer hora. Nossa, lembrei que quase fui em um show do Mano Chao uma vez, quando fui pra Argentina. Aquela viagem foi massa. Só no portunhol, há, há! Que demora pra essa água ferver. Saco, sempre faço comida nessa panela sem cabo. É horrível pra escorrer o macarrão. Essa partinha da música é muito louca. Depois vou tentar tocar ela no violão. Nossa que coceira no pé. Putz, preciso cortar a unha. Caralho, esse violão tá muito desafinado. Argelino, clandestino. Nigeriano, clandestino. Essa parte eu gosto de cantar, é fácil. Mano negra ilegal. Sempre tive dúvida se ele quer dizer mão negra ou mano de mano mesmo, tipo mano Brown. Qual será a tradução correta? Caralho, esse cachorro não para de latir. Que chato, porque cachorro late tanto? Ah, eu tava afim mesmo é de ouvir Beethoven. A nona é tão genial. Ela toca no Laranja Mecânica. Aquele filme é demais. Preciso ler o livro. Será que acho em algum sebo pra comprar? Que pena que aquele sebo fechou. Se eu por Beethoven meus vizinhos vão achar que eu sou metido a intelectual. Puuuuuuuuta merda, a água tava pra ferver! Não creio, evaporou quase tudo. Não consigo nem fazer a porra de um miojo. Mais água pra ferver. Quando será que a água tomará o lugar do petróleo? Vai ser difícil, o salário será pago em copos de água. Essa torneira tá estranha. Nossa, lembrei daquela mulher no trabalho, que pessoazinha irritante. Pra que falar aquilo? Vixe, preciso ler aquelas coisas que fiquei de ler. Também, depois que eu comer vou estudar até a vista arder, não posso enrolar mais. A grana tá apertada. Acho que nem vai dar pra comprar o livro do Laranja Mecânica. Vou ver TV enquanto espero a água ferver. Não acredito, cadê a porra do controle? Sempre some! Deve ter sido aquele gato. Ele tem mania de destruir tudo. Ops, tá aqui. Foi mal, gato. Vamos ver, vamos ver. Nossa não tem nada que preste, só bunda, peito e telejornal reclamando dos prejuízos de qualquer greve. Caraca, hoje é quarta-feira, tem jogo a noite. Ah, certeza que vai passar a merda do Corinthians. O nome do time deveria ser Corinthians Globo Esporte Clube. Por que a Globo não compra o Corinthians de uma vez? Que sono! Vou ver meu facebook. Ouvir música e ver TV ao mesmo tempo não é uma boa, não presto atenção em nenhum dos dois. Isso de fazer tudo ao mesmo tempo é culpa da globalização. Eu sempre falo, mas ninguém acredita. Queria ter vivido na década de 60 isso sim. Preciso trocar o papel de parede do meu PC. Esse teclado ta imundo. Nossa, que internet lerda. Até a tartaruga que eu tinha era mais rápida. Ela era tão linda. O que será que meu tio fez com ela? A Dona Cascuda. Há, há, que comédia essa postagem. Vou curtir. Nossa, não to aguentando de sono. Dormi mal a noite passada. Culpa do alarme daquela casa que não parava de tocar a noite toda. Decorei até a música do alarme. Era assim: iiiiii - uuuu - iiiiii - uuuu - tu tu tu tu, til til til til. Falando nisso, será que tinha ladrão tentando roubar aquela casa? Preciso por uma cerca elétrica em casa. Vixe, amanhã tenho que pagar aquela conta, devolver aquele filme. Nem consegui assistir inteiro. Foda. Vou dar uma deitadinha aqui no sofá. Só pra descansar os olhos. Zzzzz, Zzzzz, Zzzzz ...

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Sobre ser


Quando pensamos no que somos,
Já não somos mais.

Como as nuvens,

Criamos formas
E escorregamos pelos céus [ou pelos sonhos]

Mas não somos somente isso.

Somos também pedra,
Terra, dureza.

E entre o erro e a piedade,
Sem entender muito bem,
Somos ilusão
Sem deixar de ser realidade.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Uma porta entreaberta: entre Drummond e Caeiro

Quando Carlos Drummond terminava de escrever um poema sobre o tempo, que viria a fazer parte de seu livro A Rosa do Povo, o poeta sentiu uma enorme dificuldade em concluí-lo. Percebendo que seu esforço tornara-se em vão, foi até a sala onde se sentou numa poltrona já velha, mas muito confortável. Pendurado na parede a sua frente havia um quadro de um pintor de Lisboa chamado Àporo. As cores suaves da pintura preenchiam um campo verde e uma casinha simples com uma varanda, ao fundo, bem distante no cume de uma montanha. Tentando imaginar como seria aquela casa por dentro, se havia uma família, um homem solitário – e se ele ficasse doente? –, um pastor, um camponês, se haviam cachorros e passarinhos, o poeta pegou no sono. Quando se deu conta, estava em frente àquela casinha. E, sentando em uma cadeira de balanço, recitando um poema dele, estava Alberto Caeiro:

“Um inseto cava
Cava sem alarme
Perfurando a terra
Sem achar escape.

Que fazer, exausto,
Em país bloqueado,
Enlace de noite
Raíz e minério?

Eis que o labirinto
(oh razão mistério)
Presto se desata:

Em verde, sozinha,
Antieuclidiana,
Uma orquídea forma-se.”

Caeiro  – Drummond, inseto não se alarma, quem se alarma são os homens doentes.

Drummond ficou pensativo, por um instante, antes de responder.

Drummond  – Veja, entendo que poesia é negócio de grande responsabilidade, e não considero honesto rotular-se de poeta quem apenas verseje por dor-de-cotovelo. Quando digo que o inseto cava sem alarme perfurando a terra sem achar escape, quero dizer que com paciência o poeta tem que ser armar, tem que se entregar aos trabalhos cotidianos da técnica, da leitura, da contemplação, e mesmo da ação.

Caeiro  – O que tem haver poesia com responsabilidade? Não entendo.

Drummond  – Quanto egoísmo, minha voz e a voz do povo são uma só voz que ecoa nosso tempo de cinzas, de náusea. A esperança e a poesia são como uma flor que nasce no meio da rua e que ilude a polícia e rompe o asfalto. Estais no fundo do mar, Caeiro, e, mesmo que não perceba, tuas vestes estão salgadas e encharcadas. Mesmo que alheio, também carregas o fardo da sociedade. 

Caeiro  – Você fala sobre sociedade, sobre povo. Não vejo povo, nunca vi povo, vejo apenas vários homens assombrosamente diferentes entre si; cada um separado do outro por um espaço sem homens. Além disso, se este inseto a que se refere continuar cavando, tudo que encontrará será o fundo da terra onde há minérios e raízes. Mas se descontente com isto procurar mistério além do que há – que são a terra, os minérios e as raízes –, exausto se defrontará com sua própria loucura.

Drummond  – Pois digo que no fundo da terra; em país bloqueado; no enlace de noite; este labirinto escuro (por mistério) se desatará. Isto é a emancipação do povo, da poesia. Em verde, sozinha, no escuro, uma orquídea forma-se. Morre a aporia. 

Caeiro  – O mistério é há quem pense em mistério. Dizes, também, que todos sofrem, ou a maioria de todos, com as coisas humanas postas desta maneira. Dizes que se fossem diferentes, sofreriam menos. Dizes que se fossem como tu queres, seria melhor. Se as coisas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo. Ai de ti e de todos que levam a vida a querer inventar a máquina de fazer felicidade.

Drummond  – Confundo-me entre dó e enjoo diante de tua ingenuidade. Perdido na alienação inventa seu próprio pasto vazio de sentido. Não passas de uma ovelha a escrever poemas. Por isso não podes ver nem sentir o cheiro da orquídea que repele o fedor da aporia existencial e social.

Com o tom áspero da conversa os dois poetas preferiram se calar. Incomodados com um silêncio constrangedor, passaram a olhar para o sol que se punha. Então, agindo como se cada outro não estivesse presente, começaram a escrever em seus blocos de papel.
Caeiro, desajeitado e desacostumado com sentimentos eufóricos, preferiu imaginar que aquela conversa não tivesse sido daquele jeito, e escreveu:

“Ontem à tarde um homem das cidades
Falava à porta da estalgem.
Falava comigo também.
Falava da justiça e da luta para haver justiça
E dos operários que sofrem,
E do trabalho constante, e dos que têm fome,
E dos ricos, que só têm costas para isso.

E, olhando para mim, viu-me lágrimas nos olhos
E sorriu com agrado, julgando que eu sentia
O ódio que ele sentia, e a compaixão
Que ele diz que sentia.

(Mas eu mal o estava ouvindo.
Que me importam a mim os homens
E o que sofrem ou supõem que sofrem?
Sejam como eu – não sofrerão.
Todo o mal do mundo vem de nos importarmos uns com os outros,
Que para fazer bem, quer para fazer mal.
A nossa alma e o céu e a terra bastam-nos.
Querer mais, é perder isto, e ser infeliz.)

Eu no que estava pensando
Quando o amigo de gente falava
(E isso me comoveu até as lágrimas),
Era em como o murmúrio longínquo dos chocalhos
A esse entardecer
Não parecia os sinos duma capela pequenina
A que fossem à missaas florese os regatos
E as almas simples como a minha.

(Louvado seja Deus que não sou bom,
E tenho o egoísmo natural das flores
E dos rios que seguem seu caminho
Preocupados sem o saber
Só com florir e ir correndo.
É essa a única missão do mundo,
Essa – existir claramente,
E saber fazê-lo sem pensar nisso.)

E o homem calara-se, olhando o poente.
Mas que tem com o poente quem odeia e ama?”

Quando terminou de escrever, percebeu que Drummond já havia acordado e voltado para seu tempo, mas que deixara um papel sobre a cadeira onde estava. Tratava-se de um poema que ocupava a folha inteira, mas que, por algum motivo, foi apagado com exceção de um único verso.
Caeiro tomou o papel nas mãos e leu:
“O sol consola os doentes e não os renova”


Por fim, Drummond, ao viajar de volta para casa e despertar em sua poltrona finalmente conseguiu completar o poema que deixara inacabado:

“Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras e mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas e enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir.”


quarta-feira, 27 de junho de 2012

Budismo Moderno


Há um nó.

Não é seu, nem meu.
Não é de ninguém.

Não o vejo,
Mas está ali.
No meio de um cordão,
Bem em baixo de mim,
Amarrando meus pés.

Cada passo que dou
Ele aperta e machuca.
 Mas quando estou parado
O nó não dói.

Penso nele
E quase posso vê-lo.

Imóvel, fecho os olhos,
E lá no fundo vejo
O Nó sorrindo
E dizendo:

Abra os olhos
E verá
Que não há nó
Nem fundo.