sexta-feira, 25 de abril de 2014

Contrinha

O médico fez todos os exames. Estava seguro, o parto aconteceria quando a gravidez completasse exatos nove meses. 

O prognóstico falhou. A bebê era do contra, surpreendeu a todos e rebentou um mês antes. O nascimento foi penoso. A mãe estava na rua fazendo compras, na busca por roupinhas e um berço. Enquanto caminhava pelo passeio, a vista embaralhou, o passo vacilou, as sacolas caíram, a bolsa rompeu. Formou-se um aglomerado de pessoas. Uma jornalista apareceu. O milagre do nascimento seria transmitido ao vivo. A mãe gritava, banhada em suor. A criança ameaçava sair; a cabeça pra fora. Uma enfermeira que passava tentou puxá-la. A bebê assustou, voltou pra dentro.  A torcida lamentou. Decidiram levar a grávida, de carro, ao hospital mais próximo. O parto foi longo. E quando finalmente nasceu, a neném surpreendeu a todos. Contrariou o ultrassom, havia um pintinho entre as pernas.

Durante a infância também apareceram sinais de que aquele espírito a tudo contrariaria. Seus trejeitos eram femininos. Relutava, contradizia seu próprio ser. No aniversário de sete anos pediu uma metralhadora de brinquedo. Queria ser soldado. O pai era esclarecido, não reprimia. Mas não havia jeito, o pequeno não dava brecha, batia nas outras crianças para provar a macheza. Se todos torciam para o time campeão, ele vibrava com o rival; se a moda era topete, raspava a cabeça. A mãe tentou um psicólogo. O terapeuta desistiu. Tratava-se de uma mania que beirava a loucura.

Quando adulto, a doença, se assim podemos chamá-la, demonstrou-se mais grave. Foi difícil, mas encontrou uma companheira amorosa. Mulher passiva, não tinha boca pra nada, tolerava as manias do homem que a todos afastava. Até os pais. As manifestações de sua obsessão se davam em diferentes graus. Às vezes de forma mais amena, como quando foi ao cinema e ficou de olhos fechados pra contrariar os que assistiam ao filme; ou quando dormiu na cozinha só para contrariar o quarto. Quanto as atitudes excêntricas, a mais espantosa: frente ao padre, em cima do altar, disse ‘não’, só pra contrariar a noiva.

Passou por muitos empregos, enfureceu muitos patrões, chegou à velhice. Vivia num asilo. A idade avançada comumente é acompanhada de rabugices, mas nem os mais intransigentes que ali viviam suportavam as atitudes do ‘Contrinha’ – assim apelidado pelos enfermeiros. Tinha mania de cuspir os remédios indicados e tomar as pílulas do colega de quarto, cadeirante à mercê daquelas esquisitices.

Guardava o costume de jogar cartas com os companheiros na varanda do segundo andar do prédio principal do asilo. Um belo dia, ao perder uma partida de buraco, se recusou admitir a derrota. O adversário, então, velhinho enfezado e perspicaz, teve uma idéia. Em tom desafiador:

– Contrinha, ordeno que você jamais pule desta varanda.

Ele pulou.

Os velhinhos pasmaram. Desceram todos até onde encontrava-se o corpo esticado no chão. Uma das pernas virada pra trás. Aproximaram-se, bem perto. Um sorriso amarelo esboçou-se nos lábios de Contrinha.

Não morreu. Contrariou a morte. 

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